A terapia gênica na doença granulomatosa crônica: desafios e sucessos relacionados à inflamação e células-tronco hematopoiéticas
Estudo destaca a inflamação crônica, a via do interferon, e demais alterações moleculares em células-tronco hematopoiéticas como fatores preditivos de sucesso no tratamento da doença granulomatosa crônica por terapia gênica.
Escrito por: Samara Alves
Revisado por: Guareide Carelli
A terapia gênica representa um notável avanço no tratamento de doenças geneticamente determinadas. No entanto, para alcançar sucesso terapêutico, é preciso considerar outros fatores, como os associados à inflamação. Uma doença rara de origem genética é a Doença Granulomatosa Crônica (DGC), caracterizada por uma grave imunodeficiência que torna os pacientes altamente suscetíveis a infecções bacterianas e fúngicas, muitas vezes com risco de vida e resultando na formação de granulomas nos tecidos. A maioria dos pacientes apresenta sintomas já na infância e são diagnosticados antes dos cinco anos de idade. A causa da DGC reside em mutações de perda de função nos genes associados ao cromossomo X ou autossômicos que codificam os componentes da enzima Nicotinamida Adenina Dinucleotídeo Fosfato (NADPH) oxidase, presente na membrana de células fagocíticas de defesa. Em indivíduos saudáveis, essas células fagocíticas englobam partículas estranhas, bactérias e vírus, ativando processos de defesa. A enzima NADPH oxidase ativada gera, então, espécies reativas de oxigênio (EROs), como o radical hidroxila (OH∙) ou ácido hipocloroso (HOCl), altamente microbicidas, levando à destruição dos patógenos e à formação de armadilhas extracelulares de neutrófilos (NETs), que aprisionam e eliminam patógenos extracelulares.
Em indivíduos com DGC, os fagócitos apresentam deficiência na NADPH oxidase, resultando em uma produção reduzida de EROs e menor formação de NETs. Além disso, ocorre a produção exacerbada de citocinas pró-inflamatórias (como TNF-α, IL-1β, IL-6), interferons e, consequentemente, à hiperinflamação crônica e autoimunidade. Esse cenário compromete significativamente a capacidade do sistema imunológico em combater patógenos. Pacientes com DGC são frequentemente submetidos a profilaxia antimicrobiana e, ocasionalmente, tratamentos anti-inflamatórios. Atualmente, o único tratamento curativo disponível é o transplante alogênico de células-tronco hematopoéticas (CTHs), que permite a completa reconstituição do sistema imunológico a partir das CTHs de um doador compatível. No entanto, a dificuldade de se encontrar doadores compatíveis e outras complicações tornam a terapia gênica uma opção atual de tratamento viável para muitos pacientes. Uma abordagem da terapia gênica envolve a coleta das células tronco da medula óssea do próprio paciente (autólogo), modificação genética dessas CTHs por meio de vetores virais capazes de inserir material genético por transdução, e subsequentemente, o retorno dessas CTHs modificadas para o paciente, que passará a expressar corretamente o gene antes defeituoso.
Um estudo aberto de Fase I/II, financiado pela Genethon e publicado na revista Cell Reports Medicine, analisou a eficácia da terapia gênica em quatro pacientes (com idades de 8 e 28 anos) afetados pela forma ligada ao cromossomo X da DGC (X-DGC) e com uma grave deficiência na proteína gp91phox. Os pacientes foram submetidos à terapia gênica e o medicamento utilizado consistiu em células CD34+ autólogas transduzidas com o vetor lentiviral G1XCGD, em que as células CD34+ foram coletadas da medula óssea do paciente por aférese, transduzidas ex vivo com o vetor lentiviral G1XCGD e posteriormente infundidas intravenosamente após um regime de condicionamento mieloblativo com bussulfano. O estudo se concentrou na avaliação das alterações moleculares nas CTHs desses pacientes por meio do perfil transcriptômico de células-tronco hematopoiéticas e células progenitoras em nível unicelular.
Os resultados do estudo revelaram que a presença de inflamação crônica grave em CTHs pode afetar negativamente a eficácia da terapia gênica em pacientes com DGC. Dois dos pacientes não apresentaram sucesso na terapia, observando-se uma diminuição progressiva no número de células corrigidas por genes cerca de 2 a 3 meses após o tratamento, e os pacientes retornaram ao seu estado de pré-terapia gênica. Esses pacientes haviam experimentado inflamações prolongadas e severas, resistente ao uso de corticosteroides, além de infecções típicas associadas à DGC. A falha da terapia gênica foi principalmente atribuída à ativação exacerbada da via de citocinas inflamatórias, como a via do interferon (IFN). Além disso, foram identificados biomarcadores preditivos de falha da terapia. Os pacientes com falha na terapia apresentaram uma alta frequência de progenitores mieloides (muito produzidas em processos inflamatórios) e uma baixa frequência de CTHs imaturas, sugerindo que a sinalização elevada de IFN em infecções crônicas contribuiu para a exaustão e depleção de CTHs. O estudo identificou um conjunto de 51 genes relacionados ao IFN e fatores de transcrição regulados positivamente nesses pacientes, incluindo IFI44L, STAT2, IRF9, MX1, SAMD9L e CEBPB, que parecem ser específicos para as CTHs.
Por outro lado, dois pacientes que não apresentavam características celulares de inflamação crônica em CTHs tiveram benefícios clínicos da terapia gênica. Um deles alcançou uma remissão completa, enquanto o outro obteve um nível intermediário de sucesso. Para esses pacientes, a correção substancial e duradoura das CTHs foi mantida por mais de quatro anos e correlacionou-se com a atividade da NADPH oxidase neutrofílica. A menor ativação da via do IFN nesses pacientes pode ter contribuído
para a resposta benéfica e a capacidade de repovoamento das CTHs. Esse estudo demonstra que a terapia gênica é uma opção de tratamento promissora para o tratamento de DGC em pacientes sem um doador compatível, mas que presença de um nível elevado de inflamação crônica nos marcadores de CTHs, particularmente associada à via do IFN, pode prejudicar a eficácia da terapia. Assim, as características clínicas e celulares específicas dos pacientes devem ser consideradas na seleção e implementação da terapia gênica como tratamento para a DGC.
Referências:
Sobrino, S. e. (2023). Severe hematopoietic stem cell inflammation compromises chronic granulomatous disease gene therapy. Cell Reports Medicine, 4, 100919.