Terapia gênica com vetor AAV5 expressando a variante Pádua do fator IX (etranacogene dezaparvovec) para Hemofilia B foi superior ao tratamento padrão com fator IX profilático
Terapia gênica com vetor do vírus adeno-associado 5 (AAV5) expressando a variante Pádua do fator IX (etranacogene dezaparvovec) apresentou perfil de segurança e eficácia favorável em homens com hemofilia B grave ou moderadamente grave, incluindo aqueles com anticorpos neutralizantes AAV5 preexistentes. Esta terapia foi superior à profilaxia do fator IX em termos de taxa de sangramento anualizada e foi associado ao aumento sustentado da atividade do fator IX para a faixa leve a quase normal, com melhora hemostática durável associada.
Escrito por: Bárbara Yasmin Garcia Andrade Revisado por: Paulo Henrique Cavalcanti
A hemofilia B é um distúrbio hemorrágico ligado ao cromossomo X causado pela deficiência parcial ou completa da atividade do fator IX circulante devido a mutações no gene F9. Esta condição está associada ao sangramento prolongado e excessivo. Aproximadamente 70% dos casos surgem por herança recessiva ligada ao cromossomo X (por isso as manifestações clínicas são predominantes em indivíduos do sexo masculino), enquanto os outros 30% ocorrem sem história familiar conhecida (casos esporádicos).1
A hemofilia B grave causa sangramento espontâneo nas articulações e músculos, o que leva a sinovite e artropatia. Alguns pacientes com níveis de fator IX moderadamente deficientes também apresentam um fenótipo de sangramento clinicamente grave e complicações musculoesqueléticas. Atualmente, o padrão de tratamento para hemofilia B é a terapia profilática intravenosa de reposição de fator IX. No entanto, a artropatia e outras complicações de longo prazo persistem devido ao acesso e adesão insuficientes ao tratamento, variações individuais da dose e baixa atividade mínima do fator IX.2
A terapia genética vem sendo vista como uma alternativa muito interessante para o tratamento da hemofilia B. Desde 2011, vários ensaios de fase inicial de terapias genéticas baseadas em vírus adenoassociado (AAV) transportando cassete de expressão gênica do fator IX para hemofilia B mostraram aumento da atividade do fator IX, redução dos episódios de sangramento e diminuição da necessidade de reposição do fator IX. Dados de ensaios pré-clínicos e de fase 1–2 indicaram que anticorpos neutralizantes de AAV5 preexistentes não impedem a transdução com terapia genética baseada em AAV5 para hemofilia B. Estudo de 2018 mostrou que uma única infusão de AMT-060 (5 × 1012 ou 2 × 1013 cópias do genoma [gc] por quilograma de peso corporal), um vetor AAV5 que expressa o fator IX humano de tipo selvagem, aumentou a atividade do fator IX e reduziu a taxa de sangramento anualizada e o uso da reposição do fator IX por um período superior a 5 anos, mesmo em pacientes com hemofilia B que (em retrospectiva) tinham títulos de anticorpos neutralizantes de AAV5 detectáveis.3
Em fevereiro de 2023, foi publicado no The New England Journal of Medicine os resultados do ensaio HOPE-B, um estudo aberto de fase 3 da terapia genética com etranacogene dezaparvovec para o tratamento da hemofilia B, independentemente do estado preexistente de anticorpos neutralizantes de AAV5. O etranacogene dezaparvovec é um sucessor do AMT-060 que utiliza o mesmo capsídeo AAV5 recombinante contendo o cassete de expressão gênica a variante Pádua do transgene Fator IX. A proteína Pádua do fator IX tem atividade específica do fator IX 6 a 8 vezes maior do que a observada com o fator IX de tipo selvagem. Em um estudo de fase 2b envolvendo três participantes, o tratamento com etranacogene dezaparvovec resultou em atividade média sustentada do fator IX de 44,2% em 2 anos, independentemente de anticorpos neutralizantes de AAV5 serem detectáveis no início do estudo4. No estudo atual, os pacientes primeiramente passaram por um período inicial (≥6 meses) de profilaxia do fator IX, seguido da administração de uma infusão de etranacogene dezaparvovec (2×1013cópias do genoma por quilograma de peso corporal) para 54 homens com hemofilia B (atividade do fator IX ≤2% do valor normal), independentemente de anticorpos neutralizantes de AAV5 preexistentes.
O desfecho primário do estudo foi a taxa de sangramento anualizada, avaliada em uma análise de não inferioridade comparando a taxa durante os meses 7 a 18 após o tratamento com a taxa durante o período inicial. A não inferioridade do etranacogene dezaparvovec foi definida como um limite superior do intervalo de confiança Wald bilateral de 95% da taxa de taxa de sangramento anualizada que era menor que a margem de não inferioridade de 1,8. Superioridade, medidas adicionais de eficácia e segurança também foram avaliadas.
Um total de 54 participantes receberam etranacogene dezaparvovec. O acompanhamento pós-tratamento de 18 meses foi concluído por 53 participantes. A taxa de sangramento anualizada para todos os episódios de sangramento diminuiu após o tratamento, de 4,19 (IC95% 3,22 – 5,45) durante o período inicial para 1,51 (IC95% 0,81 – 2,82) no período pós-tratamento. A taxa de taxa de sangramento anualizada observada para o período pós-tratamento em comparação com o período inicial foi de 0,36 (IC95% 0,20 – 0,64; P bilateral <0,001). A taxa de sangramento
anualizada para episódios hemorrágicos tratados com fator IX também diminuiu após o tratamento (taxa de sangramento anualizada 0,23; IC95% 0,12 – 0,46). Quatorze participantes (26%) não tiveram episódios de sangramento durante o período inicial, e esse número aumentou para 34 participantes (63%) após o tratamento. A atividade do fator IX aumentou desde o início em uma média de mínimos quadrados de 36,2 pontos percentuais (IC95% 31,4 – 41,0) em 6 meses e 34,3 pontos percentuais (IC95% 29,5 – 39,1) em 18 meses após o tratamento e uso de concentrado de fator IX diminuiu em média 248.825 UI por ano por participante no período pós-tratamento (P<0,001 para todas as três comparações). Todos os 54 participantes tiveram eventos adversos que ocorreram ou pioraram durante ou após o tratamento (465 eventos adversos no total; 364 leves, 87 moderados e 14 graves). Treze participantes (24%) tiveram 14 eventos adversos graves únicos; nenhum foi considerado pelos investigadores como relacionado ao tratamento.
Os autores discutem que os resultados demonstram que o etranacogene dezaparvovec foi superior à profilaxia de fator IX de rotina com relação à taxa de sangramento anualizada (geral e tratada com fator IX), atividade do fator IX, consumo de terapia com fator IX, taxa de infusão de fator IX e taxas anualizadas de sangramento espontâneo e sangramento articular. O aumento da atividade do fator IX foi aparente a partir da semana 3 após o tratamento e foi mantido por um período de 18 meses, sem que nenhum participante tenha eliminado a expressão do transgene do fator IX pela imunidade dirigida aos hepatócitos.
Sendo assim, os autores concluem que o etranacogene dezaparvovec apresentou um perfil de segurança e eficácia favorável em homens com hemofilia B grave ou moderadamente grave, incluindo aqueles com anticorpos neutralizantes AAV5 preexistentes e os achados deste estudo sugerem que a terapia gênica pode reduzir a carga de cuidados e melhorar a qualidade de vida em pacientes com hemofilia B.
Referência:
1 – SHEN, Guomin et al. The molecular basis of FIX deficiency in hemophilia B. International journal of molecular sciences, v. 23, n. 5, p. 2762, 2022.
2 – PIPE, Steven W. et al. Gene therapy with etranacogene dezaparvovec for hemophilia B. New England Journal of Medicine, v. 388, n. 8, p. 706-718, 2023.
3 – MIESBACH, Wolfgang et al. Gene therapy with adeno-associated virus vector 5–human factor IX in adults with hemophilia B. Blood, The Journal of the American Society of Hematology, v. 131, n. 9, p. 1022-1031, 2018.
4 – VON DRYGALSKI, Annette et al. Etranacogene dezaparvovec (AAV5-Padua hFIX variant), an enhanced vector for gene transfer in adults with severe or moderate-severe hemophilia B: two year data from a Phase 2b trial. Blood, v. 136, p. 13, 2020.